Em entrevista dada ao “Jornal de Angola”, a 28 de Maio, o Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, volta a abordar o tema do 27 de Maio, repetindo incessantemente os mesmos argumentos ofensivos, ainda assim, sempre coerentes com a história e linha de actuação do regime de partido único, que foi e continuará a ser a cleptocracia/autocracia do MPLA.
Por Francisco Valles
No início da sua entrevista encontra as raízes do terrorismo de Estado, que caracterizou esses tempos, no contexto do mundo bipolar, pelo passado colonial e respectiva luta e, por fim, ao facto de Angola ser um país jovem, e como tal perfeitamente atendível e até compreensível que se tenha morto e torturado milhares de angolanos, na sua maioria militantes do MPLA. Isto sem nunca mencionar culpados ou arrependimento do partido.
Palavras como violação dos direitos humanos, pasta que aliás tutela, são omissas do seu discurso, a começar pelos seus art.º 3.º e 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que consagram o direito à vida, o direito à liberdade, a de não ser submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Na sua entrevista estas violações graves, sistemáticas e perpetradas pelo Governo de Angola/MPLA são substituídas por expressões eufémicas: “erro político”, “uma má gestão da crise”.
Aliás a expressão “erro politico” é usada indiscriminadamente para caracterizar as vítimas e os torcionários do regime.
Ainda em relação aos algozes do regime e respectivos sátrapas, existe uma tentativa de distanciamento e é utilizada a expressão “entidades políticas detentoras do poder político”, nunca o Governo do MPLA, do qual é representante.
Assim, através deste distanciamento estratégico, e fábula toda a espécie de divagações sobre as vitimas que, segundo ele, atentaram contra o Estado, facto que a referida comissão de reconciliação não procurará apurar, uma vez que a versão oficial do regime já foi há muito escrita.
As vítimas, por outro lado, presas e assassinadas sem direito a julgamento, também não poderão contestar esta versão, porque nunca lhes foi dada essa oportunidade.
Neste contexto, o regime, num acto de infinita benevolência resolveu amnistiar as vítimas de assassinato, tortura e anos de cativeiro nas condições mais degradantes, o que não parece chocar o Ministro da Justiça, nem que seja pelo simples facto de amnistiar quem nunca teve direito a um julgamento…
Primeiro mata-se, depois condena-se e finalmente “amnistia-se” mas sem nunca apurar factos!
“Amnistiadas” desta forma as vítimas, amnistiou-se os assassinos, muitos deles vivos e que continuam a gozar do beneplácito do Governo. Estes limitaram-se a responder aos “erros que os primeiros tinham cometido”, ainda que sem “excesso” porque essa palavra foi aparentemente banida da linguagem oficial do aparelho de Estado.
Essas pobres almas, verdadeiros patriotas, que se limitaram a reagir, foram, como não podia deixar de ser amnistiados, ainda que também não tenham sido identificados, nem julgados, nem se possa vir a fazê-lo em nome da auto-proclamada reconciliação.
Por outras palavras, o Governo de partido único do MPLA amnistiou-se a si próprio politicamente e aos militantes que mais o deveriam envergonhar. Estamos a falar de uma auto-amnistia, figura nova do direito, mas sem dúvida criativa.
Por fim, o regime do MPLA não poderá erguer um memorial às vitimas do 27 de Maio, porque na assumpção do seu Ministro isso levaria a que “se tivéssemos de fazer um memorial – porque é disso que estamos a falar para homenagear as vítimas dos conflitos políticos – para cada erro político que provocou vítimas seriam muitos memoriais e desqualificaríamos o valor simbólico que um memorial deve ter”.
Por outras palavras, não haveriam ruas e praças em Angola que chegassem para homenagear todos os atropelos aos direitos humanos fundamentais, dada a longa tradição torcionária do regime angolano.
Neste facto há que reconhecer que o regime está inteiramente correcto na sua avaliação.
Será assim, nestas condições que se iniciará o auto-proclamado projecto de reconciliação.
As vítimas, sem culpados, mas que são simultaneamente criminosas porque atentaram contra o Estado, sem que tivessem sido julgadas, recebem um memorial, onde também serão homenageados toda a espécie de assassinos e torturadores sanguinários, uma vez que segundo o Ministro: “todos são vítimas porque estavam dentro de um regime político, de um sistema de comando e de um clima que não permitia agir livremente”.
Nestas condições e na qualidade de familiar das verdadeiras vitimas do genocídio cometido pelo seu partido, peço-lhe Sr. Ministro, que retire as vítimas do 27 de Maio desse memorial, uma vez que nem elas, nem os sobreviventes e respectivos familiares aceitariam partilhar o mesmo espaço com os ministros de então, do qual é um qualificado herdeiro, membros da DISA, delatores e outros criminosos em geral.
Prefiro deixar o seu memorial exclusivamente para os assassinos e responsáveis pela destruição de um dos países mais ricos do mundo, num único pedestal à infâmia. Rogo-lhe que deixe as vítimas descansar em paz nas valas comuns, no fundo dos oceanos para onde as atiraram, deixem-nas onde estão em nome da sua memória. Tudo menos juntá-las a este memorial de ofensa e escárnio à sua memória!
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